José Roberto Campos
A gigantesca injeção de recursos públicos que conteve a ameaça de uma quebra em massa de instituições financeiras cria agora, ironicamente, condições econômicas semelhantes às que originaram a crise financeira global. Bolhas de ativos proliferam pelo mundo afora e as saídas tradicionais para combatê-las não estão disponíveis, nem seriam aconselháveis: uma elevação dos juros nos EUA e a redução do enorme déficit fiscal americano. Os bancos centrais de todo o mundo estão acuados por graves dilemas. Não há certeza de que a economia americana retome um ritmo sustentado de crescimento que permita a retirada das escoras do dinheiro público no curto prazo. O Federal Reserve, o BC americano, manterá os juros baixos por mais tempo, o que permite algo inimaginável há pouco tempo: a moeda americana tornar-se a predileta no carry trade que infla bolhas em vários países e mercados.
Os demais BCs são prisioneiros da liquidez americana. Nos países que mostram vigorosa recuperação, como Brasil, Austrália, Coreia, Índia, há um forte movimento de depreciação do dólar. Os juros já subiram duas vezes na Austrália para conter um aquecimento da economia. Estas ações atrairão mais depreciação do dólar australiano, porque tudo o que os investidores estão querendo é obter rentabilidades superiores às muito baixas que obtêm nos seguros títulos do Tesouro americano. Os bancos centrais perderam grande parte da autonomia da política cambial e continuam empilhando reservas em dólar para tentar conter a valorização das moedas nacionais. A semelhança com a situação pré-crise é grande, e uma delas é notável: a China não apenas continua crescendo vigorosamente, como ganha ainda mais posições de mercado.
Hoje, o que é solução para a China pode ser um problema para o resto do mundo. Quando a tormenta já se abatia sobre os bancos americanos, os chineses voltaram a indexar sua moeda ao dólar - um dólar vale 6,82 yuans desde julho de 2008 - e ela hoje acompanha seu mergulho nos mercados globais. Com isso, a China travou a dança das moedas, necessária para reequilibrar os fluxos de poupança e investimento globais, onde ela e os EUA são polos opostos e complementares. Déficits enormes nos EUA e reservas trilionárias da China formaram o pano de fundo da trágica fuzarca feita pelos bancos internacionais.
Não é preciso ir muito longe para perceber que as vantagens chinesas, que já eram grandes antes, se ampliaram. Basta olhar o Brasil. Com excesso de capacidade de produção, a máquina exportadora chinesa está vendendo produtos a preço de custo (na verdade abaixo dele, porque energia, capital e muitas outras coisas são subsidiadas) e a sua moeda perdeu mais de 30% do valor em relação ao real. Como mostrou o Valor (3 de novembro), o impulso competitivo chinês é fantástico. A queda dos preços de suas mercadorias espanta: - 63,3% para bolsas de matéria têxtil, - 41,5% em mobiliário, - 33,6% em material de informática, - 32,2% em vestuário, - 54,7% em brinquedos e - 42,2% nos terminais portáteis de telefonia celular.
De forma mais discreta, este movimento afeta também as exportações brasileiras para a China, excetuando-se commodities, avidamente requeridas, muitas das quais o Brasil, como um dos maiores produtores mundiais, pode aumentar preços e volumes. As vendas do Brasil para o mercado chinês caíram mês a mês nos últimos quatro meses, enquanto as importações subiram. Além disso, a tendência anterior à crise se acentuou e a China rouba espaço dos produtos brasileiros mais intensamente em terceiros mercados, com força especial na Argentina.
A China sempre foi o espantalho dos concorrentes no mercado global, mas seu poder se faz sentir com muito mais força agora, quando o comércio internacional está encolhendo e não crescendo a taxas recordes, como até o ano passado. O atrelamento ao dólar cria ganhos competitivos nas principais moedas - em relação ao euro é da ordem de 20%. Os principais parceiros comerciais da China, como Coreia, Tailândia, Malásia, realizam intervenções cambiais para não deixar a vantagem chinesa se alargar em terceiros mercados, onde todos competem.
Há mais vantagens ocultas nas estatísticas do comércio externo chinês. As importações de janeiro a setembro declinaram 20,4%, - perto dos 21,3% das exportações-, mas a queda dos preços explica dois terços do resultado. Isto é, não houve queda tão significativa em volumes, adquiridos por preços bem menores, que vão reforçar vendas externas mais competitivas. Pelo menos metade das importações é composta de produtos mecânicos e elétricos, também o principal item da pauta de exportações. O superávit comercial chinês foi de US$ 135,5 bilhões no período.
Mais importante, o superávit comercial da China no comércio com os EUA continua relevante - US$ 143,7 bilhões até setembro - e tende a crescer de novo. Para reduzir o enorme déficit comercial, os EUA precisam de um vigoroso desempenho exportador, puxado pelo dólar desvalorizado. Mas no terceiro trimestre, o aumento das importações (16,4%) já bateu o de exportações (14,7%). As exportações chinesas avançaram do segundo para o terceiro trimestre e pularam de US$ 276 bilhões para US$ 325 bilhões.
Volta-se então ao impasse original. O atrelamento ao dólar da moeda chinesa pode causar estragos mais à frente na China (superinvestimento, por exemplo), porém impede a resolução dos desequilíbrios globais e uma saída saudável para a economia americana. Se as exportações não tirarem os EUA do poço, o aumento da poupança americana (2,8% no ano até agora) será subtraído do consumo. O governo chinês não está tão preocupado com isso e não abrirá mão de sua política cambial, e faz, assim, com que os ajustes recaiam sobre outras moedas, como o euro e o real. Se os EUA voltarem à recessão, a desvalorização do dólar se aprofundará, reduzindo o débito com seu principal credor, a China, que poderá ou não se convencer da necessidade de acordo para evitar o mal maior: a derrocada desordenada da moeda americana. É uma tremenda encrenca.
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