12.9.11

ENTREVISTA


“Houve a década perdida da América latina nos anos 1980... (15/07/2011)

e é bem possível que atualmente esteja em curso o início da década perdida para países como Grécia, irlanda e Portugal.”

Professor titular do instituto de Economia da Universidade Federal do rio de Janeiro e co-autor do livro A Economia Política do Governo Lula (Ed. Contraponto, 2007), Reinaldo Gonçalves analisa nesta entrevista a situação econômica de países e regiões chaves, no momento atual de desdobramento da grave crise de 2008/2009, e faz um alerta a respeito da vulnerabilidade do Brasil.

P: Quase três anos após a concordata do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, como você analisa o quadro externo, especialmente a partir do comportamento das economias dos Estados Unidos e da Europa?
R:
Não há crise global como em 2008-09, mas há focos de crise bastante visíveis e incertezas críticas. Além da grave crise nos países periféricos, inclusive na Europa meridional, central e oriental, há sérios problemas no centro do sistema econômico internacional. Tomemos os casos da locomotiva EUA e da sublocomotiva Japão. Mesmo depois dos elevados estímulos fiscais e monetários, a economia estadunidense continua patinando e mostrando fragilidades. Em 2011, o déficit público previsto é de 11% e a margem de manobra para políticas fiscais e monetárias expansionistas reduziu-se significativamente. O nível de endividamento público cresceu muito e a taxa básica do FED deve continuar próxima de zero. As previsões de crescimento do PIB dos EUA estão sendo revisadas para baixo e a taxa de desemprego voltou a superar 9% em maio, ao mesmo tempo em que o elevado nível de endividamento geral, das famílias, empresas e do governo, restringe os gastos. Ou seja, a “saída keynesiana” da crise mostrou, mais uma vez, que tem fôlego curto. A “saída do gasto bélico”, por seu turno, continua em ação, na Ásia e no norte da África. O governo dos EUA está tentando, ainda, a “saída schumpeteriana”, via gastos com pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Esta saída reforçará o papel protagônico dos EUA na economia mundial, mas ela toma algum tempo para dar resultados.

O Japão, por seu turno, teve a “dádiva divina” do maremoto que destruiu a infraestrutura e, portanto, criou condições de expansão dos investimentos. Neste sentido, as perspectivas para o Japão são mais favoráveis no médio prazo. Para ilustrar, o FMI prevê queda de 0,7% do PIB japonês em 2011 e crescimento de 2,9% em 2012. Na Europa, há grande diversidade de trajetórias. As sublocomotivas alemã e francesa estão se recuperando gradativamente devido aos investimentos domésticos e à competitividade internacional, ainda que persistam restrições quanto às contas públicas.

P: Para muitos, o arranjo institucional que levou a União Europeia a adotar o euro está com os seus dias contados. Como você avalia essa questão?
R:
No conjunto dos países desenvolvidos, a Alemanha tem mostrado grande capacidade de recuperação. Ela tem como herança negativa as graves crises em países europeus que, de alguma forma, fazem parte da perspecsua zona de influência. Resgatar os bancos alemães que se envolveram na tragédia grega e em atividades de alto risco na Europa tem criado restrições ao próprio processo de recuperação alemã e, portanto, do conjunto da Europa, tendo em vista o peso relativo da Alemanha. Não interessa à Alemanha que os seus vagões descarrilem e que o sistema monetário europeu se enfraqueça. O euro deverá continuar como a segunda moeda mais importante do mundo. A força do euro depende da Alemanha e da França e não da periferia europeia. O euro e a integração europeia continuarão existindo, pois são funcionais para a consolidação do poder econômico e político da França e, principalmente, da Alemanha.

P: Grécia, Irlanda e Portugal, em que pesem os programas de ajuste em curso, conseguirão financiar as suas respectivas dívidas, de acordo com o apetite dos seus credores?
R:
O processo de ajuste está sendo doloroso e continuará assim por muitos anos. Estes países cometeram erros graves e terão que pagar por estes erros. Eles não têm autonomia de política monetária e política fiscal. Portanto, todo o ajuste está focado no corte de gastos, aumento de impostos e privatizações. O fato concreto é que eles são irrelevantes para o mundo e são peões no tabuleiro de xadrez europeu. Houve a década perdida da América Latina nos anos 1980 e é bem possível que atualmente esteja em curso o início da década perdida para países como Grécia, Irlanda e Portugal. É velha história: faça suas escolhas, faça seu caminho.

P: Como você analisa a possibilidade de países como a Espanha e a Itália virem a sofrer crises de financiamento de suas dívidas?
R:
Há riscos. Entretanto, grandes devedores recebem melhor tratamento do que pequenos devedores. Não penso que o sistema financeiro internacional reaja em relação a estes dois países da mesma forma que fez com os “peões” europeus. Espanha não é Portugal, Itália não é Grécia. O mercado é implacável, principalmente o financeiro, e tende a “chutar cachorro morto” e, por outro lado, evita enfrentamento com países de maior peso relativo. A instabilidade nestes países deve, cada vez mais, ser gerada internamente como resultado da pressão da sociedade no sentido de minimizar o custo do ajuste e da estabilização econômica. Nestes países haverá mais instabilidade política do que econômica.

P: Em que medida a política de recompra de títulos públicos, combinada com taxa de juros próximo de zero, adotada pelos Estados Unidos, interfere na crise européia?
R:
A expansão monetária e os juros baixos nos EUA facilitam o ajuste de balanço de pagamentos em todo o mundo, inclusive na Europa. Por outro lado, países que têm uma gestão macroeconômica incompetente, como o Brasil, sofrem impacto negativo. Por exemplo, apreciação cambial e forte crescimento do passivo externo.

P: A economia dos EUA está se recuperando? Está correta a política de Obama de combate à crise? Com que cenários você trabalha para a maior economia mundial?
R:
A recuperação nos EUA está fraca e marcada por incertezas críticas. Este é o problema central. O elevado nível de endividamento dos indivíduos deve restringir o consumo no horizonte previsível, mesmo com juros baixos. O espaço fiscal do governo está cada vez mais reduzido. E as empresas estão cautelosas quanto aos investimentos. A demanda externa líquida tem peso relativamente pequeno como fonte de expansão de demanda agregada nos EUA. Entretanto, o governo tem estimulado a saída via progresso técnico – criação de novos bens e serviços – e aumento de competitividade internacional. É provável que a economia dos EUA saia da crise ainda mais robusta no horizonte de médio e longo prazo.

P: Muitos analistas afirmam que a América Latina escapou ilesa à crise. Qual é a sua visão?
R:
É piada ou ignorância. Vejamos: o PiB da América latina e Caribe caiu 1,8% em 2009. No conjunto de 33 países, 19 tiveram queda do PiB em 2009. A questão central é que a vulnerabilidade externa estrutural da região é muito elevada em todas as esferas das suas relações econômicas internacionais. Na esfera comercial, a região é dependente da exportação de commodities, sendo que esta vulnerabilidade aumenta em países que sofrem a reprimarização do seu padrão de comércio. Na esfera produtiva a região depende do desempenho das subsidiárias de empresas transnacionais, que reagiram à crise cortando investimentos na região e enviando recursos de tesouraria para as matrizes. Na esfera tecnológica o hiato é crescente frente à aceleração do progresso técnico, de forma que a relação entre despesas com importação de tecnologia e os gastos com P&D caem. Na esfera monetário-financeira a vulnerabilidade externa estrutural é particularmente elevada, tendo em vista os desequilíbrios de fluxos e de estoque. No conjunto de 33 países, 24 tiveram déficit de transações correntes em 2010. O passivo externo continua crescendo em função da liberalização financeira.

P: Qual foi o impacto da crise no Brasil? Há sequelas?
R:
Perguntem aos ex-executivos e proprietários da Sadia e do Unibanco. A blindagem do Brasil é de papel crepom. Para ilustrar, as exportações caíram 23% em 2009 e 2008-09 inaugurou um período de crescentes e graves déficits de transações correntes. Não podemos esquecer que a vulnerabilidade externa estrutural do Brasil aumentou no passado recente. Isto faz parte da herança nefasta de Lula. Para ilustrar, o passivo externo financeiro líquido do país aumentou de US$ 220 bilhões no início de 2003 para US$ 630 bilhões. Este passivo é igual ao passivo externo menos a participação de capital de empresas estrangeiras no país e menos as reservas internacionais. Para os próximos cinco anos, o FMI prevê déficits de transações correntes superiores a 3% do PIB para o Brasil.

Famílias, empresas e governo que se endividam extraordinariamente pavimentam o caminho mais curto para crises externa, financeira e real.

O Brasil está repetindo erros cometidos por Grécia, Portugal e Irlanda no passado recente. E o Brasil ainda persiste com o “tridente satânico” do juro cronicamente alto, do superávit primário e do câmbio flutuante, que são responsáveis por taxas medíocres de investimento (17% em média no governo Lula). Vale repetir que o crescimento da renda no governo Lula esteve abaixo da média secular do país e foi medíocre pelos padrões internacionais atuais. A previsão do FMI de crescimento da economia mundial é de 4,3% em 2011 e 4,5% em 2012. Para o Brasil a previsão é de 4,1% e de 3,6% respectivamente. Ou seja, o Brasil continua “andando para trás” em uma trajetória de risco crescente.

P: E a China, beneficiou-se dos problemas alheios para assumir a condição de incontestável segunda potência econômica mundial?
R:
A China deve continuar crescendo a taxas muito elevadas nos próximos anos. Este país sempre teve uma extraordinária base material de poder informada pela sua população e território e, desde 1978, incrementada pela riqueza crescente. Atualmente a China já é o mais importante país exportador de bens do mundo. A geração de riqueza cresce a taxas muito superiores a da locomotiva EUA e das sublocomotivas Japão, Alemanha e França. A China está, de fato, efetivando seu poder potencial e se qualificando para ser uma sublocomotiva no médio prazo. A ascensão da China decorre, em grande medida, dos seus méritos e deméritos próprios. Dentre os méritos, os destaques são a base material e a estratégia definida de desenvolvimento acelerado com redução de vulnerabilidade externa estrutural. Dentre os deméritos, os destaques são a degradação ambiental e a extraordinária exploração do trabalhador.

Penso que a bipolaridade equilibrada deve ser o eixo estruturante da economia mundial no futuro previsível. Desta vez, a bipolaridade econômica será baseada mais em cooperação do que conflito, que marcou a bipolaridade política das quatro décadas pós-II Grande Guerra. Isto, naturalmente, não significa um mundo melhor. Simplesmente é o deslocamento do cenário de multipolaridade para um horizonte ainda mais longínquo. Neste cenário, o Brasil está em uma trajetória de alto risco, marcada por: deslocamento da fronteira de possibilidade de produção, cada vez mais enviesada para o setor primário; endividamento crescente; desindustrialização relativa; reprimarização do padrão de comércio; atraso tecnológico; e crescentes desequilíbrios de fluxos e estoques nas contas externas. Isto tudo faz parte da herança nefasta do governo Lula. E, portanto, o país deverá continuar como vagão de 3ª classe no sistema econômico internacional e com crescentes riscos de crise externa, financeira e real, ou seja, Brasil como vagão descarrilado. Nos termos desta herança, o Brasil fica com menor atrelagem à locomotiva estadunidense e maior dependência em relação ao atual vagão de primeira classe que é a China, que deverá se transformar gradativamente em sublocomotiva da economia mundial. Pobre Brasil: destinado a ser periferia!


Fonte: CORECON -RJ

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