Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano
liberta 23 trabalhadores de condições análogas à escravidão em quatro
oficinas que produziam roupas da marca Gregory.
Bianca Pyl*
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Jovem cuida do filho recém nascido enquanto trabalha - Foto: Bianca Pyl |
No
mesmo dia em que a grife de roupas femininas Gregory lançava a sua
coleção Outono-Inverno 2012 com pompa e circunstância, uma equipe de
fiscalização trabalhista flagrava situação de cerceamento de liberdade,
servidão por dívida, jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho e
indícios de tráfico de pessoas em uma oficina que produzia peças para a
marca, na Zona Norte da cidade da capital paulista.
Ao
todo, foram constatadas graves violações de dignidade de trabalhadoras e
trabalhadores e de desrespeito a direitos fundamentais em quatro
oficinas diferentes visitadas pelo Grupo de Combate ao Trabalho Escravo
Urbano da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo
(SRTE/SP). O conjunto de inspeções resultou na libertação de 23 pessoas,
todas elas estrangeiras de nacionalidade boliviana, que estavam sendo
submetidas à condições análogas à escravidão.
"De
todo o material a que a auditoria teve acesso, não resta dúvidas de que
a empresa Gregory é a responsável pela produção encontrada nas oficinas
de costura inspecionadas", concluiu a SRTE/SP, braço estadual do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Segundo os representantes do
órgão que atuaram no caso, a Gregory desenvolve a peça, escolhe e compra
o tecido, corta e entrega os cortes prontos para os fornecedores. São
dadas ainda instruções de como a peça final de roupa deve ser feita, sob
pena de não pagamento, caso algo esteja diferente do exigido pela
grife.
Ao todo foram lavrados 25 autos de
infração contra a Gregory. Um dos autos refere-se à discriminação étnica
de indígenas Quechua e Aymara. De acordo com análise feita pelos
auditores fiscais do trabalho, restou claro que o tratamento dispensado
aos indígenas era bem pior que ao dirigido aos não-indígenas que
trabalham na sede da companhia, no bairro de Pinheiros. A Gregory
recebeu os autos de infração na última terça-feira (15).
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Uma das peças encontradas pelo MTE (à esq.) nas oficinas fiscalizadas
e peça piloto na sede da Gregory em Pinheiros - Foto: Bianca Pyl
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A
empresa se recusou a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),
proposto pela procuradora do trabalho Andréa Tertuliano de Oliveira, que
compôs a equipe de fiscalização em um dos flagrantes. A Gregory poderá
ser incluída na chamada "lista suja" do trabalho escravo, cadastro
mantido pelo governo federal que reúne empregadores flagrados utilizando
trabalho escravo contemporâneo, Os responsáveis também poderão
responder em âmbito criminal pelo crime previsto no art. 149 do Código
Penal.
Primeira oficina
O
primeiro ponto de produção de peças da marca foi averiguado em 28 de
fevereiro, justamente no dia da apresentação pública e comercial da nova
coleção da Gregory. No local, a comitiva de fiscalização - formada pela
SRTE/SP, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Secretaria de
Justiça e Defesa da Cidadania (SEJDC) do Estado de São Paulo, Defensoria
Pública da União (DPU) e Centro de Apoio ao Migrante (Cami), e
acompanhada pela Repórter Brasil - encontrou um cenário de condições
desumanas.
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Jovem libertada trabalhou com jornadas exaustivas
durante toda a gravidez - Foto: Bianca Pyl
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Três
constatações simbolizam a gravidade da situação: uma jovem trabalhadora
mantinha o filho recém-nascido no colo amamentando, enquanto costurava
um vestido de renda; armários estavam trancados com cadeado para que as
pessoas não pudessem comer sem autorização; e os empregados confirmaram
que precisavam da autorização do dono da oficina para deixar o imóvel
situado no Jardim Peri, que servia ao mesmo tempo de moradia precária e
de unidade de produção têxtil improvisada.
O
carrinho de bebê colocado ao lado da máquina de costura era uma forma de
"facilitar" a continuidade do trabalho de uma mãe que não parava de
trabalhar sequer para embalar ou amamentar a criança, assim como fizera
durante toda a gravidez. Os abusos foram confirmados por Inês**, de 26
anos, uma das colegas da jovem mãe. Ambas foram libertadas com mais nove
pessoas da oficina que, conforme a fiscalização, produzia roupas para a
Gregory.
Os armários da casa eram trancados com
correntes e cadeados para que os trabalhadores e as crianças não
comessem "fora de hora". Para sair da oficina, era preciso pedir
autorização ao dono, que nem sempre permitia. "A gente tem que avisar
bem antes. E se tiver muito trabalho ele não deixa não", relatou Inês à
Repórter Brasil. Para a fiscalização está claro cerceamento de liberdade
dessas pessoas.
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Armários trancados para evitar que os trabalhadores
pudessem se alimentar - Foto: Bianca Pyl
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Marido
de Inês, Pedro**, de 30 anos, contou que trabalhava das 7h às 23h, de
segunda a sexta. A jornada era cumprida, segundo ele, "mesmo com os
olhos fechando", o que demonstra a acumuluação do cansaço. Aos sábados, o
turno seguia até às 13h.
O casal chegou a
trabalhar por três meses, de forma intensiva e sem nenhuma remuneração,
para quitar a dívida de suas passagens, sinal claro da conexão da
escravidão com o tráfico de pessoas.
Há um ano na
oficina, os dois moravam com mais duas filhas, que estudavam em
períodos diferentes e, assim como as outras crianças, ficam brincando no
local enquanto os pais e mães trabalham.
O casal
recebia, em média, R$ 3 por peça costurada. O dono, porém, não garantia
os salários conforme combinado. "Ele disse que ia pagar a cada dois
meses, mas ele nunca acerta direito. Recebemos R$ 50 aos sábados", disse
Pedro. O dinheiro era usado para a compra de comida. Nas noites de
sábado e domingo, todos costureiros e costureiras precisavam preparar a
própria comida para consumo durante a semana. Durante os domingos, o
casal se dedicava a lavar roupas e limpar o quarto em que dormiam.
A
jovem costureira chorou ao contar que pediu aumento de R$ 0,20 ao dono
da oficina. O pedido foi recusado. A situação demonstra a dependência e a
impossibilidade de abandonar o local, já que não tinham sequer recursos
suficientes para isso. Eles não saíam da casa, pois não tinham dinheiro
para a passagem do ônibus e "para comprar o que as crianças pedem".
Responsabilização
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Vestido Belart encontrado em uma das oficinas - Foto: Bianca Pyl |
No
momento da fiscalização, os trabalhadores estavam produzindo vestidos
para a marca Belart, da intermediária da Gregory, WS Modas Ltda. Por
conta disso, a intermediária também foi chamada a responder pelo caso.
Contudo,
os auditores fiscais ratificaram a relação entre a oficina flagrada e a
marca Gregory. "Nós ouvimos relatos de trabalhadores confirmando que
costuravam para a Gregory, apreendemos cadernos com anotações de
encomendas e as notas fiscais da intermediária WS, que confirmam que
peças da Gregory foram produzidas por esses trabalhadores, nessas
condições", explicou Luís Alexandre Faria, que coordena o Grupo de
Combate ao Trabalho Escravo Urbano.
Os cadernos
apreendidos apontam que exatos 4.634 vestidos da Gregory foram
produzidos na oficina do Jardim Peri durante o período de agosto de 2011
até a data da fiscalização, em 28 de fevereiro de 2012.
Entre
setembro de 2011 a fevereiro de 2012, o faturamento da WS consistia em
60% para a Gregory, sendo os restantes 40% correspondentes à
comercialização de sua marca própria Belart. A oficina em questão
costurava somente peças da Belart e da Gregory. "Nesta altura, já
restava demonstrado pela auditoria que a Gregory vinha sendo abastecida
por peças de vestuário confeccionadas naquela oficina de costura, por
trabalhadores submetidos a condições degradantes", apontou a
fiscalização, que interditou a oficina.
Ao ser
informada da situação, representantes da WS providenciaram cestas
básicas e prestaram assistências às famílias. A empresa ofereceu emprego
para todos os trabalhadores resgatados na fiscalização, mas o grupo
recusou a oferta. "Oferecemos o salário mínimo da categoria, compramos
máquinas, reformamos parte do imóvel da empresa para acolher esses
tralhadores, disponibilizamos uniformes, refeitório e equipamentos de
proteção. Mas, para nossa surpresa, fato que imediatamente comunicamos
ao Ministério do Trabalho, dois dias antes do início dos trabalhos,
recebemos dois representantes desse grupo que disse que preferiam não
ser empregados. A nós coube apenas aceitar a decisão", disse a empresa
em nota, enviada por e-mail, à Repórter Brasil.
Após
o flagrante, a WS iniciou um processo de auditoria interna, revisão de
contratos e assinatura de compromisso com fornecedores para evitar que
situações como essas se repitam. "Vamos visitar todas as oficinas e
checar as efetivas condições de trabalho e coibir qualquer prática que
possa atentar contra os direitos dos trabalhadores". O MTE lavrou, ao
todo, dez autos de infração contra a dona da marca Belart.
Segunda oficina
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Vestidos de renda da Gregory em meio ao ambiente precário
onde trabalhavam dois irmãos - Foto: Bianca Pyl
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Outros
dois trabalhadores bolivianos foram libertados na segunda oficina
inspecionada em 20 de março pela equipe interinstitucional, localizada
na periferia de Itaquaquecetuba (SP), município da grande São Paulo. Os
dois irmãos trabalhavam para outra intermediária da Gregory, a Patrícia
Su Hyun Ha Confecções Ltda., que tem o nome fantasia "Yepe".
Características
verificadas na primeira oficina - de violação de direitos básicos dos
trabalhadores, em condições degradantes e jornadas exaustivas, e a
ligação da produção com a Gregory - também foram encontradas na segunda
oficina. Os irmãos recebiam os tecidos já cortados em lotes de cerca de
30 peças para serem produzidas em quatro ou cinco dias, conforme a
dificuldade. Um deles tem experiência de 15 anos com costura. No momento
da fiscalização, os dois costuravam vestidos de renda da marca Gregory.
O
local onde funcionava a oficina era sujo e totalmente precário. As
instalações elétricas eram improvisadas e estavam expostas. As máquinas
de costura não tinham as correias protegidas. As cadeiras também eram
improvisadas. Apesar da despreparação completa, a Prefeitura de
Itaquaquecetuba (SP) concedera liminar de funcionamento para a oficina.
Terceira oficina
Mais
duas pessoas (outro casal de bolivianos) foram libertadas na terceira
oficina visitada na Zona Leste de São Paulo (SP), também mantida pela
intermediária Patrícia Su Hyun Ha Confecções Ltda.
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Oficina na Zona Leste onde calças da Gregory eram costuradas
por um casal de bolivianos - Foto: Bianca Pyl
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Há
dez anos no Brasil, Joana** trabalhava com o marido para criar os seis
filhos - o mais novo, de quatro anos, tem síndrome de down. Com uma
jornada das 7h às 22h, ela diz que sua distração é "vender bolo na feira
da Coimbra". "Fora isso, não temos nada. Só trabalho", contou. O
dinheiro da costura pagava o aluguel de R$ 300; enquanto a verba da
venda de bolos ia para a alimentação. Joana e o marido já passaram fome
com os filhos no Brasil. "A gente só tinha mingau para comer, no almoço e
na janta", contou.
A oficina também não seguia
nenhuma norma de saúde e segurança do trabalho e funcionava em um cômodo
improvisado. A reportagem mostrou o último catálogo da Gregory para o
marido de Joana, que possui mais de 20 anos de experiência em costura. O
trabalhador regstadao reconheceu algumas peças. "Essa eu já fiz. Eu fiz
um blazer neste tecido, nesta cor também", declarou, mostrando as peças
fotografadas pela marca.
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Apesar do ambiente precário, a peça segue impecável
para as lojas da grife brasileira - Foto: Bianca Pyl
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Quarta oficina
O
último local inspecionado foi na Vila Dionísia, na Zona Norte da
capital paulista. O grupo de libertados, que era formado por oito
bolivianos, trabalhava das 7h30 às 22h, conforme anotado em um dos
cadernos apreendidos.
Outras anotações revelaram
que as encomendas feitas pela Gregory desde 2009. O responsável pela
oficina afirmou, porém, que vinha trabalhando com exclusividade para a
Gregory desde julho de 2011. "Eu trabalhava para duas empresas, mas um
deles deixou de me passar encomenda porque achou ruim eu costurar para
mais de um, pois as entregas atrasavam um pouco", disse Paulo*, que
passou a costurar exclusivamente peças da grife.
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Caderno com anotações de encomendas Gregory datam de 20 de
agosto de 2009 - Foto: Bainca Pyl
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Os
trabalhadores recebiam, em média, R$ 3 por peça. O lote de vestido de
renda - o mesmo encontrado em Itaquaquecetuba (SP) - que estavam na
oficina também foi apreendido. A fiscalização localizou, na sede da
Gregory no bairro de Pinheiros, o pedido de encomenda do vestido no
valor de R$ 73 (pagos à intermediária) e indicava preço de R$ 318 para
venda.
Paulo vive no Brasil há sete anos, com
toda família. "Eu vim depois de meus dois irmãos". Em La Paz, ele era
motorista de empilhadeira, cargo que chegou a ocupar aqui no Brasil por
dois anos. Após o falecimento de uma irmã, que tinha uma oficina de
costura, assumiu o local. "Nunca me imaginei na costura", disse.
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Vítimas trabalhavam mais de 10h por dia - Foto: Bianca Pyl |
Dependência econômica
As
investigações preliminares realizadas pelo Grupo de Combate ao Trabalho
Escravo Urbano apontavam que a intermediária Patrícia Su Hyun Ha não
tinha capacidade produtiva para produzir peças encomendadas pela
Gregory. A intermediária mantinha apenas dois costureiros contratados,
cuja função era a montagem das peças-piloto da Gregory que seriam
reproduzidas pelas oficinas.
Os auditores fiscais
também constataram a dependência econômica da intermediária Patrícia Su
Hyun Ha para com a Gregory por meio do movimento fiscal da empresa:
mais de 80% do faturamento provinha da Gregory, no período entre janeiro
e março de 2012.
Após a fiscalização, os
trabalhadores receberam as verbas rescisórias, no valor de R$ 55 mil, e
as guias para sacar o Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado. Eles
tiveram as Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS)
provisórias emitidas pelo MTE e aqueles que não possuem Registro
Nacional do Estrangeiro (RNE) receberam auxílio da DPU para
documentação.
A investigação da cadeia produtiva
da Gregory se iniciou em maio do ano passado, quando a Gerência Regional
do Trabalho e Emprego (GRTE) de Campinas (SP) e a Procuradoria Regional
do Trabalho da 15ª Região (PRT-15), encontraram fichas técnicas de
pedidos da Gregory na oficina onde 52 pessoas foram libertadas de
trabalho análogo ao de escravo, parte do grupo costurava calças jeans
para a grife espanhola Zara.
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Màquinas lacradas pela fiscalização após flgrante de trabalho escravo.
Lote de vestidos também foi apreendido - Foto: Bianca Pyl
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Além
disso, a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2) recebeu
uma denúncia de um boliviano relatando que estaria costurando para a
Gregory em condições degradantes e cumprindo jornada exaustiva.
Andrea
Duca, diretora de marketing da Gregory, afirma que a empresa só tem a
agradecer a fiscalização do MTE e seus respectivos auditores fiscais por
"ter alertado a empresa sobre as irregularidades". Segundo ela, os
problemas "aconteciam sem nosso conhecimento". "O fornecedor envolvido
nesse assunto já está regularizado", sustentou em mensagem enviada à
Repórter Brasil por e-mail.
Apesar da
fiscalização não ter dúvida quanto à responsabilidade da empresa em
relação à situação de degradação encontrada, a diretora Andrea argumenta
que a grife Gregory não usou trabalho escravo "porque não produz
nenhuma peça". "Após orientação da equipe de estilo Gregory, todas as
peças são compradas prontas de nossos fornecedores", alega.
*A
jornalista acompanhou todas as fiscalizações realizadas por conta do
compromisso assumido no Pacto a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho
Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções.
**Os nomes são fictícios para proteger as vítimas.